a máquina está em nós
Nosso laboratório de experimentação tecnopolítica parte de um diagnóstico aterrador ao mesmo tempo que procura encontrar caminhos contra a atual paralisia: reconhecer os bloqueios e capturas que governam nosso tempo e imaginação sem nos render, mapear os inimigos sem abrir mão daquilo que nos torna capazes de agir e do que nos vincula. E o que nos vincula? Quais as formas de vida estamos dispostos a criar e defender? Mckenzie Wark chama de “baixa teoria” (low theory) a prática de fazer teoria junto de um movimento, um coletivo, um estudo compartilhado, uma pequena conspiração. É a baixa teoria que nos move aqui.
Há 25 anos atrás, os debates sobre tecnologias digitais (ao menos aqueles que a maioria de nós estavamos engajados) pareciam apontar, enfim, para uma possibilidade de liberação da vida dos circuitos de produção e circulação de valor do capital; liberação do conhecimento e das tecnologias em relação aos regimes proprietários; liberação da ação política para além das fronteiras nacionais e das instituições de representação.
Hoje, a situação dificilmente escapa de uma análise catrastrofista. Não só nosso sonho de liberação foi abatido, mas a reorganização dos regimes de poder e do capital se alimentaram da nossa vitalidade, transformando as noções de “liberdade”, “conhecimento aberto”, “livre circulação da informação”, “democratização da comunicação”, “inteligência coletiva”, “participação política” em ativos para a expansão e o fortalecimento dos sistemas de dominação.
O pior: o êxito do tecnoautoritarismo e do capitalismo tecnoinformacional nos faz suspeitar de nós mesmos. Fomos ingênuos demais? Entregamos mais do que deveríamos na aposta de uma internet como território livre? Subestimamos os inimigos e suas armas de captura? Diante disso, como retomar um horizonte de transformação radical agora que a expansão da digitalização da vida e das tecnologias informacionais se impõem como mediação ubíqua entre nossas práticas e discursos, nossas relações e nossos pensamentos, nosso desejo, sensibilidade e imaginação, nossa memória e a produção de futuros? E qual é a memória ou a experiência compartilhada que nos vincula quando a vida é convertida em excesso informacional?
Um dos aforismos de “Um Manifesto Hacker”, de Mckenzie Wark, dizia: “os hackers usam seu conhecimento e sua perspicácia para manter sua autonomia”. Essa ainda nos parece uma formulação provocadora. Ao invés de nos mover na direção de uma “soberania digital” pensada nos termos da geopolitica dos estados-nação e seus projetos de poder e controle, preferimos nos perguntar: quais os arranjos sociotécnicos que podem sustentar autonomias ? Aliás: o que é autonomia? Entre outras coisas, pensamos em formas de vida que emergem nos intertícios dos circuitos de valor e espoliação do tecnocapital, territórios de interdependência multiespécie cujas formas técnicas estão voltadas à vida, à diversidade, ao tempo do cultivo lento, à reciprocidade e aos modos ativos de dispersar o poder e às formas de controle. Um território não precisa ser um espaço fisíco com fronteiras bem delimitadas, ele pode ser instituído a partir de relações que vinculam práticas e pertencimentos, cumplicidades e dissidências.
A gramática do extrativismo constitui a economia tecnopolítica civilizatória no presente global e faz convergir modos permanentes de espoliação e gestão autoritária para converter e administrar territórios vivos em zonas passíveis de serem sacrificadas. As ditas inovações tecnocientíficas recentes, ligadas à expansão das tecnologias digitais como os modelos de inteligência artificial, por exemplo, apresentam um novo ciclo de demanda crescente por energia elétrica e extração dos chamados metais raros. Ainda que possamos defender tecnologia de “baixo impacto”, nos parece importante voltar às perguntas mais fundamentais como, por exemplo, que tipo de produção de conhecimento nos interessa? O que entendemos por eficiência? O que é o Comum que estamos dispostos a cultivar e defender? Nos parece que em nome da “transição energética” ou dos novos conflitos militaristas se renova o espírito da ideologia tecnopolítica da Guerra Fria na qual a ideia de “avanço tecnológico”, escalabilidade, automação e eficiência passam a dar as cartas, de forma mais decisiva, na geopolítica global e na legitimidade das formas políticas coloniais de domínio.
Diante deste cenário, os esforços de regulação do capitalismo tecnoinformacional parecem mais pavimentar o caminho por onde circula a espoliação e o controle civilizatório do que produzir formas de resistência e garantia de direitos.
Por um lado, a exponencial capacidade de vigilância, encarceramento e extermínio permitiu aos Estados e suas estruturas militares incrementarem genocídios ao mesmo tempo que os convertem em eventos cotidianos narrados em nossas barras de rolagem. Por outro lado, a digitalização da nossa vida e as dinâmicas de vigilância e controle se espalham no tecido social em uma epidemia praticada não só pelo Estado, mas nas famílias, amigos-seguidores, vizinhos ou empresas.
Como nossas imaginações e práticas coletivas de transformação podem retomar os vínculos com o desejo insurgente? Se o que constitui uma máquina é, sobretudo, suas ações de concatenação – talvez nossa potência não esteja na adoção de uma forma técnica supostamente libertadora ou mais justa, mas na força que conecta nosso desejo de liberação com nossas capacidades de experimentar, já no presente, outras formas de vida.
Escapemos do regime de visibilidade e da economia política narcísica; recusemos o espaço dos monopólios coorporativos como sendo a nova esfera pública, desertemos da máquina de captura e extração para criar e alimentar uma economia própria de suporte mútuo e de defesa do Comum. Criar e sustentar mundos sob outras racionalidades, normatividades e cosmovisões, ao mesmo tempo que se sabota as engrenagens do rolo compressor colonial para reduzir a eficiência do sistema dominante, desinvestindo e fragilizando suas infraestruturas técnicas, econômicas e jurídicas. Romper com os critérios da eficiência técnica capitalista e viver sob os critérios de suficiência Terrana. A luta coletiva no campo tecnopolítico digital pode ser aqui e agora uma luta cosmopolítica, anticapitalista e contra-colonial.
